DELAÇÃO PREMIADA – Não sendo com a gente, é até engraçado!

Há muito conheci um personagem da cultura popular brasileira – o “Geraldinho” – que antes de sua morte tornou-se nacionalmente conhecido pelos seus causos da “bicicleta” e do “maribondo”. Nesse último, em determinado momento ele dizia: “Ô sô, ocê já viu aqueles maribondão que anda de a pé…..tem hora que não sendo na gente, é até engraçado”. Exatamente assim, ele despertava uma gargalhada sem fim em quem estava ouvindo. Isso porque realmente um ataque de maribondos geralmente é uma cena engraçada, desde que não seja conosco. Pois bem. Foi com esta mesma filosofia que dia desses, depois de ser muito questionado por meus alunos do curso de direito, que ao falar do interrogatório no processo penal brasileiro, reservei um pequeno espaço para enfrentar a legalidade e eficácia das delações premiadas, tão presentes nos noticiários atuais, e de uso quase que obrigatório nas ações penais em curso no país, em que os acusados formam o que a lei denomina de organização criminosa.

Mas optei por fazer uma abordagem diferente e como conseqüência, promover uma aula diferente do que até então eu havia proporcionado a meus alunos. Iniciei explicando a eles um pequeno dissabor com o qual tínhamos convivido dias atrás naquela mesma turma. É que, muito embora a maioria da turma não soubesse, porque evitei constranger o aluno, eu o surpreendi colando em uma das provas de processo penal, valendo-se de um pequeno pedaço de papel com algumas minúsculas anotações – artefato muito conhecido no cenário acadêmico. Naquela oportunidade recolhi sua prova e disse a ele que sua nota seria “zero”. Diante dessa notícia, o acadêmico se viu praticamente em dependência na matéria, uma vez que, dado o valor daquela prova, ele dificilmente conseguiria recuperar a nota nas outras atividades.

Informei à turma que, uma semana antes daquela aula, eu havia sido procurado em meu escritório por aquele aluno – a turma não sabia de quem se tratava, já que não viram quando eu o surpreendi colando – que fez a mim uma proposta muito interessante e que eu estava tentado a aceitá-la. A proposta do aluno era no sentido de que ele apontaria pra mim todos os demais alunos, com os nomes, que também estavam colando naquela mesma prova, inclusive explicando a forma como se davam as colas e, em troca, eu daria total na prova dele que havia sido zerada, ou no mínimo, daria a ele a metade dos pontos. Além disso, com certeza eu iria zerar todas as outras provas, cujos alunos ele me apontasse, e que certamente ficariam de dependência pelos mesmos motivos ditos acima. Assim, perguntei aos alunos o que eles achavam da idéia, já que eu ainda não tinha respondido a ele, mas estava tendencioso a fazer esse acordo com ele.

Não é preciso dizer e nem mesmo fantasiar que todos os leitores facilmente conseguem imaginar como ficaram os alunos diante dessa informação. Ficamos por um considerável tempo tentando acalmar os alunos que queriam a qualquer custo identificar quem teria sido o “sacana” que propôs isso ao professor. 

Diante de inúmeras manifestações de repúdio e de raiva estampada aos olhos, ouvia-se de tudo. No meio das falácias, ouvi um “se eu descobrir quem foi eu mato”, e logo pensei, esse era um dos que estavam colando.

Mas em seguida, depois de experimentar esta reação, pedi a todos que fizessem silêncio e expliquei que tudo não teria passado de uma historinha criada por mim para começar aquela aula. Na verdade, nada daquilo teria acontecido e nenhum aluno jamais teria me feito essa proposta e, muito menos, eu estaria tendencioso a aceitá-la. Foi apenas uma forma diferente de fazer a abordagem de um tema jurídico tão polêmico. Disse a eles: “Agora creio que todos vocês estão prontos para ter uma aula sobre delação premiada!”.

É exatamente isso que ocorre todas as vezes que é noticiada na mídia mais um acordo de delação premiada em algum processo penal em trâmite no país. A primeira impressão que qualquer cidadão tem é a de que é, sem dúvida, a melhor coisa a fazer, ou seja, os fins justificam os meios. O que a maioria não se dá ao trabalho de imaginar é se pensaria da mesma forma se a vítima daquele acordo fosse ela mesma.
Há muito que o legislador brasileiro vem ensaiando fazer da delação premiada um meio eficaz de prova no processo penal brasileiro. Atualmente a lei que tem embasado todos esses acordos de grande repercussão midiática é a Lei 12.850/13 (Lei de Combata ao Crime Organizado). Desde que foi publicada, vem sendo – sem nenhum critério – utilizada pelas autoridades policiais, representantes do Ministério Público e Judiciário, sempre invocando a necessidade de se combater o crime organizado no país.

A referida lei talvez seja a lei cuja constitucionalidade mais seja discutida nos dias atuais no Brasil. Isso em razão de que muitas de suas previsões são questionáveis à luz da proteção constitucional assegurada ao cidadão brasileiro no texto do artigo 5º da Constituição Federal. Mas, essa é outra faceta da história que será enfrentada em outro momento. A questão que se põe para análise, pelo menos por hora, é até que ponto as delações premiadas podem fundamentar um decreto condenatório.

A Polícia Federal, o Ministério Público e o Judiciário tem feito da “operação lava jato” um roteiro que nenhum filme norte-americano foi capaz de fazer até hoje. Nesta citada operação, foram vários os acordos de delação premiada elaborados e homologados pelo Juiz que seria, no mínimo, imprudência nossa, querer enfrentar qualquer deles aqui. Mas, com costumeiro apoio da mídia sensacionalista de plantão, tivemos acesso a alguns deles e – confesso – causou-me espanto, a dimensão dos termos utilizados nos referidos acordos.

Algumas condenações produzidas nestes processos tem toda a sua fundamentação nos termos de alguma delação premiada oferecida no processo. A grande preocupação é saber se estão averiguando a fidelidade do que é dito pelos delatores e até que ponto ele estaria mesmo disposto a contribuir ou, estaria mais uma vez, enganando o poder público. É no mínimo muito estranho que alguém, preso pelo Estado e acusado de mentir, enganar, trapacear, corromper, fraudar e todos os outros verbos encontrados nos tipos penais da lei, de uma hora para outra para a gozar de toda confiança do Estado que passa acreditar piamente que agora ele estaria falando a verdade. É tudo muito questionável.

Difícil mesmo é imaginar que em um Estado Democrático de Direito que deve se pautar pela ética e pela moral e que tem em sua Carta Magna, de forma expressa no artigo 37, os princípios que regem a administração pública, sendo, pois, a Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência – passe a se render aos princípios que regem o crime – mentira e traição – como forma de assegurar uma pseudo idéia de efetividade no combate à corrupção. Lembremos que todos os órgãos citados acima pertencem à administração pública e, portanto, devem se pautar pelos princípios insertos na Constituição.

Para que não percamos o sentido do que foi proposto aqui, lembremos que, naquela sala de aula, a delação premiada que eventualmente fosse feita com o aluno, no máximo provocaria a reprovação de alguns alunos em uma matéria, obrigando-os a repetir apenas aquela matéria em outro período. Bem diferente, de um castigo como os que temos visto que margeiam a soma de 10 a 15 anos de reclusão em regime inicialmente fechado.

Certo mesmo, era nosso artista Geraldinho, que tão precocemente nos deixou. Em sua fala faço apenas uma pequena adaptação: “Delação premiada: Não sendo na gente, é até engraçado…..” (sic).

Professor Warlem Freire Barbosa. Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal e Processo Penal nas Faculdades FUNORTE de Montes Claros.

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